terra, corpo com órgãos
Fotografia por Inês Subtil
Em São Miguel, com os restos do cozido das Furnas, faz-se uma refeição chamada de ‘enterro dos ossos’. Como no Natal, com a sopa seca ou a roupa velha, o momento de convívio faz-se com aquilo que sobra do fim da festa.
Também as panelas utilizadas no cozido são, como diria Ursula[*], uma cesta: aquilo que guarda, que contém, e que contenta. Não poderão elas, por exemplo, serem nomeadas de arquivo? Como as colchas que evoca bell hooks em estilo crazy quilts, escolher o tecido com o qual se vestirá a panela, o modo como é embrulhada e depois atada com fio de pesca, vê-la viajar dos vários pontos da Ilha até às covas — cada um destes objetos em ação são também uma forma de contar histórias. E a História está enraizada nas suas trajetórias.
Sem acesso à escrita, aos palcos, tantas vezes ao próprio rosto ou à voz, é através dos objetos que as mulheres valorizam ou usam no seu quotidiano que podemos contar ou re-criar a sua memória.
Nesta performance que faz da coisa enterrada um arquivo, propusemos a diferentes mulheres que conhecemos na Ilha que escolhessem um objeto, perguntando-lhes o que desejariam arquivar; plantar, em moldes próprios, o que é seu na memória do futuro. Enterrar, portanto, não para que se esconda, mas para que seja encontrado.
Guardamos a localização desses artefactos, e com elas os seus ‘geo-significados’ — que podem, inclusivamente, ser antíteses da própria ideia de que um só objecto é capaz de resumir a identidade de uma mulher — ou até, que a categoria mulher possa ser uma identidade estática que agrupa o mundo interior diverso de uma só pessoa.
[*] Ursula K. Le Guin, 2022, A FICÇÃO COMO CESTA: UMA TEORIA e outros textos. Agradecimento caloroso à curadora todo-terreno, Reina Del Mar, por ter trazido esse e outros livros para a residência maio 2022 das corisca.
Encenação, dramaturgia
Geo-Localização: Ribeira Grande
outras que se seguirão
Ação:
Cada mulher traz um item à sua escolha. Pode ser um objeto do quotidiano, pode ser um objeto querido. Um objeto com o sentido de símbolo, de totem: aquilo que encapsula ancestralidade, experiência vivida e a desconstrução ou não de um sagrado.
Quatro fotografias serão registadas.
1.Abrir um buraco
No ritual do cozido, os homens dominam as aberturas da terra e têm acesso privilegiado à cova, às entranhas. A relação é privilegiada, a dos homens com o Buraco. Nas lendas, ao demónio é-lhe dado uma parte das mulheres, as mulheres guardadas.
2.Colocar o objeto ao buraco
A comida vai, mas a comida volta, e os homens controlam. A hora do rapto — a hora do encontro — é a madrugada, é o amanhecer. À hora perigosa, são os homens que vão até às Caldeiras e controlam o processo, e as mulheres são afastadas.
3. O objeto no fundo/o item deitado por terra
E a mulher com o capuz é como o cozido na panela. O que se passa pode ser até uma espécie de antífrase do rapto [antífrase: fazer o fogo com o fogo]. Trocar o sinal “ético” da polaridade positiva ou negativa do acto, o acto negativo, tirando-lhe a polaridade.
4. Tapar o buraco
Leva-se a mulher para o submundo, e isso podia ser um desastre: leva a mulher, deixa a infertilidade por meio ano. Mas, assim, transforma-se isto num ato de re-fertilização quase instantâneo.
A comida vai, mas a comida volta, é madrugada, é amanhecer, e serão nossos os ‘enterros’ vivos que façamos.
performance
maio 2022 – ongoing
Performers
Beatriz Toste e Clarisse Canha
Produtora
Mafalda Fernandes
Parceiro institucional
Ministério da Cultura - Républica Portuguesa
Agradecimentos
Marques Britas SA - Grupo Marques
UMAR Açores - Associação para a Igualdade e Direitos das Mulheres
terra, corpo com órgãos
Fotografia por Inês Subtil
Em São Miguel, com os restos do cozido das Furnas, faz-se uma refeição chamada de ‘enterro dos ossos’. Como no Natal, com a sopa seca ou a roupa velha, o momento de convívio faz-se com aquilo que sobra do fim da festa.
Também as panelas utilizadas no cozido são, como diria Ursula[*], uma cesta: aquilo que guarda, que contém, e que contenta. Não poderão elas, por exemplo, serem nomeadas de arquivo? Como as colchas que evoca bell hooks em estilo crazy quilts, escolher o tecido com o qual se vestirá a panela, o modo como é embrulhada e depois atada com fio de pesca, vê-la viajar dos vários pontos da Ilha até às covas — cada um destes objetos em ação são também uma forma de contar histórias. E a História está enraizada nas suas trajetórias.
Sem acesso à escrita, aos palcos, tantas vezes ao próprio rosto ou à voz, é através dos objetos que as mulheres valorizam ou usam no seu quotidiano que podemos contar ou re-criar a sua memória.
Nesta performance que faz da coisa enterrada um arquivo, propusemos a diferentes mulheres que conhecemos na Ilha que escolhessem um objeto, perguntando-lhes o que desejariam arquivar; plantar, em moldes próprios, o que é seu na memória do futuro. Enterrar, portanto, não para que se esconda, mas para que seja encontrado.
Guardamos a localização desses artefactos, e com elas os seus ‘geo-significados’ — que podem, inclusivamente, ser antíteses da própria ideia de que um só objecto é capaz de resumir a identidade de uma mulher — ou até, que a categoria mulher possa ser uma identidade estática que agrupa o mundo interior diverso de uma só pessoa.
[*] Ursula K. Le Guin, 2022, A FICÇÃO COMO CESTA: UMA TEORIA e outros textos. Agradecimento caloroso à curadora todo-terreno, Reina Del Mar, por ter trazido esse e outros livros para a residência maio 2022 das corisca.
Encenação, dramaturgia
Geo-Localização: Ribeira Grande
outras que se seguirão
Ação:
Cada mulher traz um item à sua escolha. Pode ser um objeto do quotidiano, pode ser um objeto querido. Um objeto com o sentido de símbolo, de totem: aquilo que encapsula ancestralidade, experiência vivida e a desconstrução ou não de um sagrado.
Quatro fotografias serão registadas.
1.Abrir um buraco
No ritual do cozido, os homens dominam as aberturas da terra e têm acesso privilegiado à cova, às entranhas. A relação é privilegiada, a dos homens com o Buraco. Nas lendas, ao demónio é-lhe dado uma parte das mulheres, as mulheres guardadas.
2.Colocar o objeto ao buraco
A comida vai, mas a comida volta, e os homens controlam. A hora do rapto — a hora do encontro — é a madrugada, é o amanhecer. À hora perigosa, são os homens que vão até às Caldeiras e controlam o processo, e as mulheres são afastadas.
3. O objeto no fundo/o item deitado por terra
E a mulher com o capuz é como o cozido na panela. O que se passa pode ser até uma espécie de antífrase do rapto [antífrase: fazer o fogo com o fogo]. Trocar o sinal “ético” da polaridade positiva ou negativa do acto, o acto negativo, tirando-lhe a polaridade.
4. Tapar o buraco
Leva-se a mulher para o submundo, e isso podia ser um desastre: leva a mulher, deixa a infertilidade por meio ano. Mas, assim, transforma-se isto num ato de re-fertilização quase instantâneo.
A comida vai, mas a comida volta, é madrugada, é amanhecer, e serão nossos os ‘enterros’ vivos que façamos.
performance
maio 2022 – ongoing
Performers
Beatriz Toste e Clarisse Canha
Produtora
Mafalda Fernandes
Parceiro institucional
Ministério da Cultura - Républica Portuguesa
Agradecimentos
Marques Britas SA - Grupo Marques
UMAR Açores - Associação para a Igualdade e Direitos das Mulheres